Analog Sharks: onde a arte encontra o oceano
O mar sempre esteve lá, como um espelho inquieto em torno de Portugal, sussurrando histórias de luzes e sombras. Ele molda as falésias e modera o vento, mas sob a sua superfície esconde-se um mundo menos conhecido, menos visível e muito mais frágil. Nestas águas, onde o Atlântico respira contra a plataforma continental, os tubarões e as raias movem-se como fantasmas de outra época, antigos, deliberados, resistentes. Estão aqui desde muito antes de as primeiras velas cruzarem o horizonte e, no entanto, na linguagem silenciosa das marés, estão a desaparecer.
O projeto Analog Sharks começa nesse silêncio, uma convergência entre arte e ciência, uma tentativa de ouvir o oceano. Ele não busca apenas registrar a vida dos tubarões e das raias, mas também senti-la: através da lenta alquimia do cinema, através da luz impressa na prata, através das mãos manchadas de revelador e sal.
Sin título
O chamado das profundezas
No mar, a luz refrata-se de forma diferente. Ela fragmenta-se e curva-se, ondulando sobre as cristas das ondas e dissolvendo-se depois no azul. Lá em baixo, o mundo desacelera. Os raios deslizam sobre a areia como luas caídas. As sombras dos tubarões cruzam os recifes com um ritmo tranquilo.
É aqui, nesta extensão azul, que Vasco Coelho desce com uma velha câmara selada dentro de uma caixa metálica. O peso do equipamento é-lhe familiar, o ritmo da sua respiração é constante. O som do regulador desaparece no pulsar do mar. À sua frente, a lente torna-se o único olho, uma fina barreira de vidro entre o mundo humano e o grande azul.
Nas águas atlânticas de Portugal, estes encontros não são raros, simplesmente invisíveis. Ao longo das costas escarpadas de Sesimbra e Cascais, entre os cumes submersos do Algarve e nas águas abertas dos Açores e da Madeira, a vida move-se de formas que desafiam o ritmo humano. Os pequenos tubarões-gato aconchegam-se na areia. O tubarão azul deixa-se levar pelas correntes. Nos canhões mais profundos, o tubarão de seis guelras, uma relíquia da pré-história, atravessa os corredores escuros do abismo.
E onde o leito marinho se estende em planícies suaves, as raias jazem semi-enterradas, raias espinhosas, raias-águia, raias elétricas, as suas formas ocultas mas vivas, respirando através da areia.
Não são monstros nem mitos. São vizinhas do mar português, guardiãs do seu equilíbrio, indicadoras da sua saúde. Fotografá-las não é apenas capturar a beleza, mas enfrentar a vulnerabilidade, traçar a linha entre o que perdura e o que desaparece.
© Vasco Coelho
Filme e água salgada
Numa época em que cada imagem pode ser capturada num instante, este projeto aposta na lentidão. O filme é um meio paciente, que exige atenção, ritual e imperfeição.
Debaixo de água, o tempo prolonga-se, o fotógrafo deve esperar que a criatura passe, que a água acalme. A câmara zumbe silenciosamente, o filme gira, o momento é capturado. Mas o resultado só será conhecido após vários dias, às vezes semanas, até que os negativos sequem na câmara escura, até que as formas emerjam do papel em suaves tons prateados ou coloridos.
De volta à terra firme, o trabalho continua sob o brilho vermelho de uma luz de segurança, o cheiro do revelador e do fixador enche o ar, agudo, químico, estranhamente reconfortante. O filme é lavado, pendurado, seco e depois vem a folha de contacto: fileiras de pequenos fantasmas incertos que esperam para serem revelados.
© Vasco Coelho
Às vezes, as cópias são feitas em preto e branco intenso, onde o mar se transforma em textura e memória; outras vezes, são coloridas, tonificadas à mão, pintadas com nuances que imitam os estados de espírito do oceano. Por vezes, opta-se pela cianotipia, o antigo processo de impressão que transforma a imagem num azul profundo e intemporal. Não se trata apenas de escolhas estéticas, são metáforas, o processo analógico reflete os próprios ritmos do oceano, pacientes, estratificados, imprevisíveis, vivos.
Através deste lento trabalho artesanal, o projeto transforma a fotografia, permite que a ciência fale na linguagem da emoção e que a arte transmita o peso dos factos.
© Vasco Coelho
Tubarões, raias e a frágil rede
Cada imagem é um registo, mas também uma pergunta. O que significa documentar um mundo em risco de desaparecer?
Os tubarões e as raias não são apenas objetos, são símbolos do equilíbrio ecológico. As suas vidas desenvolvem-se ao longo de décadas, a sua reprodução é lenta e a sua sobrevivência incerta. Nas águas portuguesas, muitas espécies estão ameaçadas, capturadas acidentalmente, presas em redes ou pressionadas pelo aquecimento dos mares. As raias, em particular, sofrem de forma invisível: frequentemente desembarcadas sob nomes genéricos, a sua diversidade é reduzida ao anonimato.
A câmara, neste caso, torna-se uma ferramenta de reconhecimento. Olhar de perto é devolver a identidade, dizer: «este vive aqui, este importa». Uma fotografia de uma raia descansando na areia, com os seus espiráculos pulsando suavemente, transmite mais do que uma forma, transmite a história de uma espécie, um habitat, um ecossistema unido por fios invisíveis.
Ao concentrar-se igualmente nos tubarões e nas raias, o projeto amplia a narrativa da conservação. Os tubarões personificam o selvagem, o poderoso; as raias evocam a graciosidade, a sutileza, a quietude. Juntos, formam um continuum visual e ecológico, desde os profundos corredores pelágicos até as águas costeiras rasas e banhadas pelo sol.
© Vasco Coelho
O mar vivo de Portugal
O mundo marinho de Portugal é um laboratório vivo, cheio de contrastes. Nos Açores, as encostas vulcânicas mergulham no abismo; na Madeira, as águas cristalinas brilham com os vagabundos pelágicos. As enseadas arenosas do Algarve escondem raias em repouso, as falésias escarpadas de Arrábida abrigam florestas de algas e jardins de corais. Cada região oferece o seu próprio ritmo, a sua própria paleta de vida.
Através da lente analógica, cada lugar torna-se mais do que geografia, torna-se caráter. O mar tem estados de espírito: escurece, ilumina-se, recorda... O objetivo da Analog Sharks não é apenas cartografar esses lugares, mas traduzi-los em sentimentos, em compreensão, em cuidado.
© Vasco Coelho
Da imagem à ação
As fotografias por si só não salvam as espécies, por isso o projeto vai além da câmara escura e se estende às salas de aula, galerias e comunidades costeiras.
As exposições de grande formato percorrerão museus e centros marítimos, convidando os visitantes a encontrarem-se cara a cara com os habitantes do oceano. As impressões serão acompanhadas por mapas, notas sobre as espécies e narrativas que estabelecem uma ponte entre os dados científicos e as emoções humanas.
Em seguida, serão realizados workshops, nos quais os estudantes e residentes locais aprenderão não só sobre tubarões e raias, mas também sobre o processo em si.
Essas histórias, ensaios, imagens e reflexões serão compilados num livro, um objeto tátil destinado a perdurar, a ser conservado e transmitido. Uma plataforma online refletirá isso no âmbito digital, ligando a arte aos dados, a imagem ao contexto, Portugal ao vasto mundo oceânico.
Através destas camadas, a exposição, a educação e a publicação, o projeto torna-se uma conversa: entre o artista e o cientista, o professor e o aluno, o mergulhador e o pescador, o espectador e o mar.
© Vasco Coelho
O peso do tempo
No final, o título fala por si mesmo: Analog Sharks.
O filme captura o tempo fisicamente, a luz presa na emulsão, os momentos fixados em prata. O oceano também captura o tempo, no lento crescimento dos corais, na migração de um tubarão que regressa após anos, nos milénios esculpidos no leito marinho. Ambos são arquivos frágeis, ambos requerem cuidado.
Fotografar tubarões e raias com filme é aceitar a imperfeição, o desfoque por movimento, o grão, a imprevisibilidade, mas dentro dessas imperfeições encontra-se a verdade. O oceano não é estático, ele se move, respira, resiste à clareza, e o processo analógico honra isso, permite que a imagem permaneça viva, que transmita mistério.
© Vasco Coelho
Uma imagem final
Imagine isto: um mergulhador desloca-se quinze metros, perto da borda de um canyon, a luz desvanece-se até se tornar azul acinzentada. Por baixo, uma raia desliza pela areia, levantando pequenas nuvens que brilham como pó à luz do sol. O mergulhador levanta a câmara, um clique, um clarão de bolhas, e o momento desaparece, mas algo fica no filme.
Semanas depois, sob o brilho vermelho da câmara escura, esse mesmo momento reaparece, granulado, imperfeito, luminoso, com os contornos da linha, a textura da areia, o peso da água. O que antes era fugaz volta a ser visível, conservado na luz e no grão.
Essa é a essência do projeto: não apenas mostrar, mas lembrar, lembrar-nos que ainda é possível encontrar beleza no que perdura e responsabilidade no que desaparece.
O mar português não está vazio. Respira com vida ancestral, com tubarões e raias que deslizam pelas suas profundezas como têm feito há milénios, e se aprendermos a ver, a ver realmente, através do prisma do tempo, talvez também aprendamos a proteger o que resta.
© Vasco Coelho
Vasco Coelho
Conheça Vasco Coelho
Vasco Coelho é um fotojornalista, cineasta e narrador português movido por uma profunda paixão por explorar o desconhecido. É licenciado em Fotografia e Cultura Visual pelo IADE e tem um mestrado em Ciências da Comunicação, com especialização em Cinema e Televisão, pela Universidade Nova FCSH. Vasco dedicou a sua carreira a revelar narrativas desconhecidas através de uma poderosa narrativa visual.
O seu trabalho tem aparecido em publicações de renome, como a National Geographic Portugal e o Jornal Público, destacando-se pela sua capacidade de fundir a integridade jornalística com a sensibilidade artística. Em reconhecimento ao seu talento e dedicação ao fotojornalismo, Vasco foi selecionado para participar no prestigiado Eddie Adams Workshop de Nova Iorque, um dos programas mais reconhecidos do mundo para fotógrafos emergentes.
Entre as suas muitas áreas de exploração, a fotografia subaquática ocupa um lugar especial. Como mergulhador certificado, Vasco capta a beleza oculta e a fragilidade da vida marinha, revelando mundos que poucos já viram. Combinado com a sua certificação de piloto de drones, o seu trabalho abrange o ar, a terra e o mar, oferecendo uma perspetiva verdadeiramente multidimensional do nosso planeta.
A sua missão é simples, mas profunda: inspirar as pessoas a apaixonarem-se pelo desconhecido, transformando cada imagem numa janela para o invisível.
Vasco Coelho |
@vasco_coelho_photo